domingo, 2 de dezembro de 2012

GATI realiza visita de acompanhamento na TI. Tremembé Córrego João Pereira/CE


Foto: Ascom / APOINME

Segue abaixo, relato dos técnicos Tiago Silva e Thiago Oliveira sobre a visita de acompanhamento técnico e fiscalização dos projetos apoiados pelo GATI/FUNAI/PNUD e pela Carteira Indígena nas Terras Indígena Córrego João Pereira e Queimadas.
Esta visita marca a volta do técnico Tiago Silva, desta vez prestando consultoria ao GATI, às comunidades Tremembé, após um período em que foi praticamente obrigado pela coordenação da FUNAI a se afastar das aldeias Tremembé injustificadamente, devido a questões que até hoje não foram devidamente compreendidas. Mas o importante é que a reinserção de Tiago já representa um novo ânimo para as aldeias Tremembé, que estavam sem acompanhamento algum nos seus respectivos projetos.
Abaixo a descrição de Tiago Silva sobre a retomada dos trabalhos e em seguida o relatório das visitas ao Córrego João Pereira elaborado por Thiago Oliveira.


Relato de Tiago Silva

Depois de uma longa novela, acredito que dessa vez as coisas possam estar um pouco mais favoráveis para a realização de trabalhos junto às aldeias Tremembé. Acredito que um dos maiores problemas de nossa sociedade é a comunicação ou a falta dela. Por isso fomos "quase" que obrigados a nos afastar dos trabalhos com a comunidade. Porém, como sabemos o caos é necessário para desorganizar e posteriormente reorganizar. Depois de longos 12 meses, retornamos à comunidade, porém, dessa vez, um pouco mais animados. 
Há cerca de 02 meses, recebi uma ligação de Isabel Modercin, bióloga, assessora do Projeto de Gestão Ambiental em Terras Indígenas - GATI, fruto do esforço conjunto do Movimento Indígena, da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e do Ministério do Meio Ambiente – MMA, com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, para colaborar em atividades com os Tremembé (para saber mais sobre o GATI, clique aqui).
Esse contato foi feito através de Luís Gustavo, da Carteira Indígena/Ministério do Meio Ambiente - MMA, que nos indicou para auxiliar no trabalho de Isabel junto a Terra Indígena Córrego João Pereira, visto que é a única TI. do Ceará que foi inserida no GATI por ser homologada.
Após alguns dias de conversa via email juntamente com as lideranças locais (Francisco José), o coordenador da CTL-FUNAI de Itarema (Antonio Neto), com o total apoio do PNUD, via projeto GATI (Isabel), pudemos viabilizar uma visita de campo, que teve como objetivo: reunir com as lideranças locais e identificar os projetos que estão em funcionamento ou por acontecer, procurando possíveis gargalos para a sua não execução e encontrando soluções para os mesmos.
Foram 07 dias de trabalhos, que iniciamos a partir do dia 24 de outubro de 2012. Ao chegar na aldeia eu, Thiago Oliveira (companheiro de trabalho), Isabel e Alexandre Pankarurú (representante da APOINME) que estava na parte de comunicação dos trabalhos, fomos recebidos com um almoço delicioso preparado pela esposa de Afonso, vice-presidente da Associação de São José. Em seguida, nos sentamos no alpendre para vermos um mapa que ele tinha feito da TI.

Afonso mostrando o mapa a Isabel/GATI e ao técnico Thiago Oliveira

Depois fomos participar de uma reunião com as lideranças indígenas das 4 aldeias do Córrego João Pereira: Cajazeiras, São José, Capim Açu e Telhas. Contamos com a participação de cerca de 15 pessoas e a representação de 3 associações, exceto o Conselho Indígena do Córrego de Telhas, que não se fez presente. Nos apresentamos, nos conhecemos e falamos sobre dos projetos em andamento e os que estão por vir dentro da TI.

Reunião na Associação da aldeia São José




Relatório da Visita – TI. Córrego João Pereira
Thiago Oliveira

1° Dia – 24/10/2012

Ao chegar na comunidade realizamos uma reunião que teve como intuito principal a discussão das seguintes pautas:
  • Apresentação dos participantes;
  • Apresentação e discussão dos projetos do Córrego João Pereira (em andamento e os não iniciados), com ênfase no projeto da aldeia São José aprovado pela Carteira Indígena/MMA e pelo GATI/FUNAI/PNUD.

Foram elencados os seguintes projetos:
  • Preservação dos Serrotes que são áreas utilizadas para retirada de madeiras para construção de casas, frutos nativos, caça e local de encontros espirituais (encantados);
  • Formação de 10 Agentes de Agricultura Ecológica - ADAE, pela Fundação CEPEMA;
  • Beneficiamento de Frutas, através de produção de polpas e doces;
  • Quintais Produtivos (Nutritivos);
  • Implantação da Cerca Viva com Sabíá (Mimosa Caesalpinefolia) por todo o perímetro da TI, em parceria com a FUNAI;
  • Projeto de Irrigação para plantio de 05 hectares de coco (aldeia São José);


Na oportunidade, os participantes da reunião discutiram a situação dos projetos desenvolvidos na terra indígena, sobretudo, o projeto da aldeia São José aprovado pelo GATI/Carteira Indígena, cuja situação está comprometida pelo escasso acompanhamento técnico destinado às famílias envolvidas, pois conforme relatado, a FUNAI atualmente conta com apenas um técnico disponível para atender as demandas de assistência técnica das aldeias indígenas de todo o Ceará, de modo que a carência de pessoal dificulta o trabalho de acompanhamento dos projetos nas aldeias.
Os projetos relatados são os que possuem financiamento a fundo perdido, neste caso foram relatados, dois projetos de irrigação um para a Associação do Córrego do João Pereira, sendo que este já conta com todo o equipamento e estrutura para viabilizar a produção desde que se faça uma proposta de readaptação a realidade, desejo, e necessidades das famílias envolvidas.
O segundo projeto, referente ao plantio irrigado de coco, se configura como o ponto principal e motivo da presença do Técnico Tiago Silva Bezerra, que desempenhou atividades anteriores nas comunidades de Telhas e Queimadas, entre os anos de 2009 e 2011, em parceria com a prefeitura municipal de Acaraú, e em virtude deste trabalho e do seu conhecimento sobre a realidade dos Tremembé de Queimadas e Córrego João Pereira, foi convidado a realizar a readaptação deste projeto de irrigação dentro de uma perspectiva agroecológica, visando a agrobiodiversidade de alimentos produzidos para a segurança alimentar das famílias e a venda do excedente de produção em feiras e/ou através de compras governamentais, tendo como base de gestão o controle social exercido pela comunidade e assessorado por parceiros, respeitando o protagonismo das comunidades.
Foi mencionado pelo grupo a intenção da construção de uma cerca viva perimetral na aldeia utilizando o Sabiá (Mimosa Caelsapinaceae) em cerca de 32 km de extensão, pois os mesmos enfatizaram que o arame farpado comumente utilizado na construção de cercas tem um significado muito forte, pois representa o latifúndio e, por sua vez, os conflitos gerados no passado contra os grileiros que atuaram na região por muitos anos.
Foi verificado também o projeto de mudas destinado para a Associação do São José/TI. Córrego João Pereira, sendo que este foi colocado para ser viabilizado em uma área de 0,5 hectare, mas quando deparado com a realidade mostrou-se grandioso a tal ponto que poderá implicar dificuldades de manejo diante de sua área total voltada para a produção, pois devido a experiência na produção de mudas, dependendo da espécie utilizada, do tamanho de saco de muda, dentre outros fatores, 1m2 é o suficiente para produzir cerca de 1.000 mudas, em virtude disto provavelmente uma área bem menor corresponda as expectativas referentes a este projeto, que na verdade também precisaria ser revisto.
Deste encontro foram retirados os seguintes encaminhamentos da reunião:
Ver locais prováveis para implantar o projeto de Irrigação da Aldeia de São José;
Visitar os projetos desenvolvidos em Telhas e Queimadas (a título de experiências já em funcionamento).

2° Dia 25/10/2012

No dia seguinte fomos realizar as visitas de campo, conhecer os lugares tradicionais e sagrados do Córrego do João Pereira como o serrote e as matas ao seu redor que são destinadas a preservação, mas chegando ao local, empiricamente podemos tirar a impressão que o local sofre intervenções humanas com a retirada de madeira por seus habitantes, apesar de Seu Afonso afirmar que a área não sofre intervenção há bastante tempo. Como se pôde constatar, o extrato da vegetação mostra que a mesma possui uma vegetação muito rala para ter um pousio tão longo. As principais plantas nativas encontradas no percurso foram a Ubaia, Bacumixá, Jatobá, Pau D’ Arco, Umburana de espinho etc.
Foram visitados os três pontos de onde a comunidade de São José deseja implantar a área de irrigação. Nos três locais foram feitas considerações a respeito das implicações da escolha de cada um dos locais. Foi sugerido que esta deliberação passasse pela apreciação comutaria na assembleia da associação com a participação de todos e todas, posto que se trata de uma importante decisão.
Na parte da tarde visitamos a aldeia Telhas/TI Córrego João Pereira, em especial a casa de Seu Tota, indígena agricultor e escavador de poços da comunidade, tendo este feito mais de 90 poços, beneficiando famílias de sua e de outras comunidades. Além de dominar esta habilidade, Tota é um agricultor agroflorestal sensibilizado com a proposta de cunho ecológico e replicador deste conhecimento dentro de sua comunidade.
No final da tarde visitamos a TI. Queimadas, em particular os quintais da Senhora Marluce e de Evaldo, ambos agricultores agroecológicos que vem trabalhando com a produção orgânica mas sem certificação dos alimentos

3° Dia 26/10/2012

No terceiro de dia foi realizada uma oficina para a reformulação do projeto escrito originalmente pelo técnico da FUNAI para o plantio de coco em sistema irrigado. Como a proposta foi aprovada, mas com ressalvas, principalmente pelo caráter da proposta inicial, que da forma como foi construído não contemplava a aplicação de princípios agroecológicos, como exige a Carteira Indígena. O projeto inicial previa o sistema de plantio solteiro, com irrigação utilizando maquinários e insumos agrícolas para o preparo da terra, de modo que o projeto apresentava mais proximidade com o modelo de produção exercido nos lotes do Perímetro Irrigado do Baixo Acaraú. Deste modo, o GATI e a Carteira Indígena solicitaram que a proposta fosse reformulada a partir de uma práxis ecológica e sustentável á longo prazo, pois a produção convencional baseada no modelo do agronegócio com o decorrer do tempo torna a terra improdutiva e escassa em sua fertilidade natural devido a adição de agroquímicos no cultivo agrícola.
Ao iniciarmos a oficina foi feita a apresentação dos participantes externos (no caso, os técnicos Tiago Silva Bezerra e Thiago Oliveira Gomes), o motivo de nossa presença e um breve resumo da atuação profissional de cada um. Em seguida, todos os presentes fizeram sua apresentação falando livremente a respeito do que esperavam do dia, sua vida em comunidade, etc. Ainda pela manhã, foi feita a releitura do projeto expondo as condicionantes que haviam sido impostas, os pontos que mais chamaram a atenção do público foram:

Formação dos participantes;
Na elaboração inicial, partia-se do pressuposto de que a comunidade já dominava a técnica de plantio da cultura do coco, o que foi prontamente rebatido pelos participantes que pontuaram que não resta dúvidas sobre a habilidade de plantar coco nos seus quintais, mas em se tratando de cultivo em larga escala e num sistema irrigado, é necessário a capacitação, item este que o projeto inicial não contemplava.
Cerca viva e adubo;
O outro ponto é referente à construção de uma cerca perimetral, cujos valores orçados são insuficientes para tal. O projeto também não contempla a compra de adubo para preparo do solo.
Depois de feita a leitura do projeto os mesmos colocaram as suas considerações a respeito, e fechamos a parte da manhã.
À tarde, nos reunimos com um grupo maior, que foi aumentando no decorrer da oficina, principalmente pelos homens que estavam trabalhando durante o dia e que foram encerrando suas atividades ao longo da tarde.
Esta parte foi dedicada a realização de uma dinâmica de trabalho em dupla, que tinha como intuito principal descrever as atividades e conhecimentos agrícolas e pastoris praticados pelos Tremembé do Córrego, isto é, o que estes sabem fazer referente a produção de alimentos, entre frutas, legumes, tubérculos, frutas nativas, criação de animais, etc. O resultado configurou-se como um grande mosaico de informações e conhecimentos localizados e adaptados as suas reais necessidades quanto à vida em comunidade ao longo da história dos indígenas na região.
Destaque para a prática dos agricultores Tremembé de guardarem suas próprias sementes e nisto serem autônomos no que diz respeito as sementes repassadas pelos órgão de ater. Os mesmos reconhecem o valor e a importância de estarem sempre plantando os cultivares de seus antepassados. Diante do conhecimento indígena, foi se trabalhando a ideia de se praticar uma agricultura baseada na sustentabilidade de base ecológica, utilizando e otimizando os recursos naturais locais, principalmente os de cunho social, ambiental e produtivo.
Após a apreciação do grupo, foi colocado para os mesmos a seguinte pergunta: o que desejo produzir? Na coleta e sistematização das respostas fora colocado exatamente o que foi mencionado na dinâmica anterior, ou seja, o desejo de se produzir uma gama variada de alimentos citados pelos participantes anteriormente, pois foi possível perceber que é mais fácil para eles investir naquilo que já sabem e também porque a produção de coco possui um ciclo médio de produção entre 02 e 03 anos, o que implica pensar o que fazer durante esse lapso de tempo sem safras.
Neste aspecto, foi colocado para os mesmos que tendo uma área irrigada seria possível fazer o plantio associado do coco com uma variedade de espécies alimentares, pois os agricultores Tremembé já possuem habilidade para produzirem tais alimentos. Deste modo, possuem de fato uma agrobiodiversidade alimentar que de primeira mão servirá para a segurança alimentar das famílias envolvidas e também uma economia para as famílias envolvidas na produção, pois reduz o custo com alimentos comprados fora da terra indígena.
Diante do exposto, foi sugerido e acatado por estes, a participação efetiva dos participantes na proposta, a implementação de uma área irrigada em forma de policultivo, explorando os diferentes níveis do solo para o cultivo de frutas, verduras, hortaliças, legumes etc., seguindo uma proposta de estarem implementando culturas de curto prazo (0 – 12 meses) de ciclo médio (01 – 03 anos) e de ciclo longo (03 – 08 anos), reconhecendo quais culturas produzem nestes espaços de tempo e utilizando as informações geradas pelos mesmos.
O outro ponto colocado foi quais as necessidades que se terão futuramente. Foram elencadas algumas questões, dentre as quais: a adubação, o preparo da terra, a comercialização dos produtos, a organização comunitária etc. Na verdade, a intenção de ver estes itens objetiva ver o que está ao alcance da comunidade resolver e o que se precisa estar buscando através das parcerias. Posterior a essa discussão, foi colocado a importância da comunidade estar firmando parceiras para poder resolver suas necessidades.

Ao final do dia, foi feita uma breve avaliação e colocado a importância das pessoas estarem presentes no dia seguinte, pois ficou definido que a área de produção será construída de maneira coletiva, bem como a implantação do sistema de irrigação, mas que a produção será por unidade familiar, ou seja, a área total será de 05 hectares de área irrigada e será dividida em 20 partes iguais que será destinada às famílias envolvidas no projeto, onde cada uma terá como área disponível 2.500 metros quadrados de área para a produção de frutas, verduras, hortaliças, legumes, grãos, tubérculos e o coco.

4º dia – 27/10/2012

No dia seguinte foi realizada uma recapitulação da discussão do dia anterior com a fala livre para quem quisesse comentar alguma coisa. Em seguida, foi traçado um pequeno plano de trabalho sobre como seriam as ações. As discussões e deliberações dos dias de oficina foram documentadas e registradas em ata com a assinatura dos respectivos participantes do projeto. Inicialmente, 17 famílias se habilitaram, restando 03 vagas para serem preenchidas por quem tiver interesse. Foi marcada para o sábado, dia 03 de Novembro, uma assembléia interna para relatar aos demais sócios o que aconteceu nesses dias e disponibilizar o restante das vagas aos interessados.

Os dias seguintes foram dedicados às visitas em Telhas e Queimadas, dessa vez para tratar da situação dos projetos da Carteira Indígena em andamento nas duas aldeias, referentes à chamada pública para as mulheres indígenas. As duas aldeias apresentavam situações parecidas, sobretudo no que se refere à ausência de assistência técnica na implantação dos mesmos, como também foram encontrados problemas relacionados à gestão dos recursos.
As lideranças de Queimadas e Telhas, e sobretudo as mulheres participantes dos projetos, manifestaram o desejo de que Tiago possa retomar o trabalho de ATER Indígena e acompanhar a execução dos projetos.



domingo, 25 de novembro de 2012

Crônica de José Ribamar Bessa Freire


KÁTIA, A ANTROPÓLOGA, CRIADORA DA ABREUGRAFIA
José Ribamar Bessa Freire
25/11/2012 - Diário do Amazonas



Nelson Rodrigues só se deslumbrou com "a psicóloga da PUC" porque não conheceu "a antropóloga da Folha". Mas ela existe. É a Kátia Abreu. É ela quem diz aos leitores daFolha de São Paulo, com muita autoridade, quem é índio no Brasil. É ela quem religiosamente, todos os sábados, em sua coluna, nos explica como vivem os "nossos aborígenes". É ela quem nos ensina sobre a organização social, a distribuição espacial e o modo de viver deles.
Podeis obtemperar que o caderno Mercado, onde a coluna é publicada, não é lugar adequado para esse tipo de reflexão e eu vos respondo que não é pecado se aproveitar das brechas da mídia. Mesmo dentro do mercado, a autora conseguiu discorrer sobre a temática indígena, não se intimidou nem sequer diante de algo tão complexo como a estrutura de parentesco e teorizou sobre "aborigenidade", ou seja, a identidade dos "silvícolas" que constitui o foco central de sua  - digamos assim - linha de pesquisa.
A maior contribuição da antropóloga da Folha talvez tenha sido justamente a recuperação que fez de categorias como "sílvicola" e "aborígene", muito usadas no período colonial, mas lamentavelmente já esquecidas por seus colegas de ofício. Desencavá-las foi um trabalho de arqueologia num sambaqui conceitual, que demonstrou, afinal, que um conceito nunca morre, permanece como a bela adormecida à espera de alguém que o desperte com um beijo. Não precisa nem reciclá-lo. Foi o que Kátia Abreu fez.
Com tal ferramenta inovadora, ela estabeleceu as linhas de uma nova política indigenista, depois de fulminar e demolir aquilo que chama de "antropologia imóvel" que seria praticada pela Funai. Sua abordagem vai além do estudo sobre a relação observador-observado na pesquisa antropológica, não se limitando a ver como índios observam antropólogos, mas como quem está de fora observa os antropólogos sendo observados pelos índios. Não sei se me faço entender. Mas em inglês seria algo assim como Observing Observers Observed.  
Os argonautas do Gurupi
Todo esse esforço de abstração desaguou na criação de um modelo teórico, a partir do qual Kátia Abreu sistematizou um ousado método etnográfico conhecido como abreugrafia que, nos anos 1940, não passava de um prosaico exame de raios X do tórax, uma técnica de tirar chapa radiográfica do pulmão para diagnosticar a tuberculose, mas que foi ressignificado. Hoje, abreugrafia é a descrição etnográfica feita com o método inventado por Kátia Abreu, no caso uma espécie de raio X das sociedades indígenas.
Esse método de coleta e registro de dados foi empregado na elaboração dos três últimos artigos assinados pela antropóloga da Folha: Uma antropologia imóvel (17/11), A Tragédia da Funai(03/11/) e Até abuso tem limite (27/10) que bem mereciam ser editados, com outros, num livro intitulado "Os argonautas do Gurupi". São textos imperdíveis, que deviam ser leitura obrigatória de todo estudante que se inicia nos mistérios da antropologia. A etnografia refinada e apurada que daí resulta quebrou paradigmas e provocou uma ruptura epistemológica ao ponto de não-retorno.
A antropóloga da Folha aplicou aqui seu método revolucionário - a abreugrafia - que substituiu o tradicional trabalho de campo, tornando caducas as contribuições de Boas e Malinowski. Até então, para estudar as microssociedades não ocidentais, o antropólogo ia conviver lá, com os nativos, tinha de "viver na lama também, comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar" da sociedade estudada, numa convivência prolongada e profunda com ela, como em  'Lama', interpretada por Núbia Lafayette ou Maria Bethania.
A abreugrafia acabou com essas presepadas. Nada de cantoria. Nada de anthropological blues.Agora, o antropólogo já não precisa se deslocar para sítios longínquos, nem viver um ano a quatro mil metros de altura, numa pequena comunidade nos Andes, comendo carne de lhama, ou se internar nas selvas amazônicas entre os huitoto, como fez um casal de amigos meus. E tem ainda uma vantagem adicional: com a abreugrafia, os antropólogos nunca mais serão observados pelos índios.
Em que consiste, afinal, esse método que dispensa o trabalho de campo? É simples. Para conhecer os índios, basta tão somente pagar entrevistadores terceirizados. Foi o que fez a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) que, por acaso, é presidida por Kátia Abreu. A CNA encomendou pesquisa ao Datafolha que, por acaso, pertence à empresa dona do jornal onde, por acaso, escreve Kátia. Está tudo em casa. Por acaso.
Terra à vista
Os pesquisadores contratados, sempre viajando em duplas - um homem e uma mulher - realizaram 1.222 entrevistas em 32 aldeias com cem habitantes ou mais, em todas as regiões do país. Os resultados mostram que 63% dos índios têm televisão, 37% tem aparelho de DVD, 51% geladeira, 66% fogão a gás e 36% telefone celular. "A margem de erro" - rejubila-se o Datafolha - "é de três pontos percentuais para mais ou para menos".
"Eu não disse! Bem que eu dizia" - repetiu Kátia Abreu no seu último artigo, no qual gritou "terra à vista", com o tom de quem acaba de descobrir o Brasil. O acesso dos índios aos eletrodomésticos foi exibido por ela como a prova de que os "silvícolas" já estão integrados ao modo de vida urbano, ao contrário do que pretende a Funai, com sua "antropologia imóvel" que "busca eternizar os povos indígenas como primitivos e personagens simbólicos da vida simples". A antropóloga da Folha, filiada à corrente da "antropologia móvel", seja lá o que isso signifique, concluiu:
"Nossos tupis-guaranis, por exemplo, são estudados há tanto tempo quanto os astecas e os incas, mas a ilusão de que eles, em seus sonhos e seus desejos, estão parados, não resiste a meia hora de conversa com qualquer um dos seus descendentes atuais".
Antropólogos da velha guarda que persistem em fazer trabalho de campo alegam que Kátia Abreu, além de nunca ter conversado sequer um minuto com um índio, arrombou portas que já estavam abertas. Qualquer aluno de antropologia sabe que as culturas indígenas não estão congeladas, pois vivem em diálogo com as culturas do entorno. Para a velha guarda, Kátia Abreu cometeu o erro dos geocêntricos, pensando que os outros estão imóveis e ela em movimento, quando quem está parada no tempo é ela, incapaz de perceber que não é o sol que dá voltas diárias em torno da terra.
No seu artigo, a antropóloga da Folha lamenta que os índios "continuem morrendo de diarreia". Segundo ela, isso acontece, não porque os rios estejam poluídos pelo agronegócio, mas "porque seus tutores não lhes ensinaram que a água de beber deve ser fervida". Esses tutores representados pela FUNAI - escreve ela - são responsáveis por manter os índios "numa situação de extrema pobreza, como brasileiros pobres". Numa afirmação cuja margem de erro é de 3% para mais ou para menos, ela conclui que os índios não precisam de tutela.
- Quem precisa de tutela intelectual é Kátia Abreu - retrucam os antropólogos invejosos da velha guarda, que desconhecem a abreugrafia. Eles contestam a pobreza dos índios, citando Marshall Sahlins através de postagem feita no facebook por Eduardo Viveiros de Castro:
‎"Os povos mais 'primitivos' do mundo tem poucas posses, mas eles não são pobres. Pobreza não é uma questão de se ter uma pequena quantidade de bens, nem é simplesmente uma relação entre meios e fins. A pobreza é, acima de tudo, uma relação entre pessoas. Ela é um estatuto social. Enquanto tal, a pobreza é uma invenção da civilização. Ela emergiu com a civilização..."
Miss Desmatamento
A conclusão mais importante que a antropóloga da Folha retira das pesquisas realizadas com a abreugrafia é de que os "aborígenes", já modernizados, não precisam de terras que, aliás, segundo a pesquisa, é uma preocupação secundária dos índios, evidentemente com uma margem de erro de três pontos para mais ou para menos.
- "Reduzir o índio à terra é o mesmo que continuar a querer e imaginá-lo nu" - escreve a antropóloga da Folha, que não quer ver o índio nu em seu território. "Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público. O índio hoje reclama da falta de assistência médica, de remédio, de escola, de meios e instrumentos para tirar o sustento de suas terras. Mais chão não dá a ele a dignidade que lhe é subtraída pela falta de estrutura sanitária, de capacitação técnica e até mesmo de investimentos para o cultivo".
A autora sustenta que não é de terra, mas de fossas sépticas e de privadas que o índio precisa. Demarcar terras indígenas, para ela, significa aumentar os conflitos na área, porque "ocorre aí uma expropriação criminosa de terras produtivas, e o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com uma mão na frente e outra atrás".
Ficamos, então, assim combinados: os índios não precisam de terra, quem precisa são os fazendeiros, os pecuaristas e o agronegócio. Dados apresentados pela jornalista Verenilde Pereira mostram que na área Guarani Kaiowá existem 20 milhões de cabeças de gado que dispõem de 3 a 5 hectares por cabeça, enquanto cada índio não chega a ocupar um hectare.
Um discípulo menor de Kátia Abreu, Luiz Felipe Pondé, também articulista da Folha, tem feito enorme esforço para acompanhar a produção intelectual de sua mestra, usando as técnicas da abreugrafia, sem sucesso, como mostra artigo por ele publicado com o título Guarani Kaiowá de boutique (9/11), onde tenta debochar da solidariedade recente aos Kaiowá que explodiu nas redes sociais.
Kátia Regina de Abreu, 50 anos, empresária, pecuarista e senadora pelo Tocantins (ex-DEM,atual PSD), não é apenas antropóloga da Folha. É também psicóloga formada pela PUC de Goiás, reunindo dois perfis que deslumbrariam Nelson Rodrigues.
Bartolomé De las Casas, reconhecido defensor dos índios no século XVI, contesta o discurso do cronista do rei, Gonzalo Fernandez de Oviedo, questionando sua objetividade pelo lugar que ele ocupa no sistema econômico colonial:  
- “Se na capa do livro de Oviedo estivesse escrito que seu autor era conquistador, explorador e matador de índios e ainda inimigo cruel deles, pouco crédito e autoridade sua história teria entre os cristãos inteligentes e sensíveis”.
O que é que nós podemos escrever na capa do livro "Os Argonautas do Gurupi" de Kátia Abreu, eleita pelo movimento ambientalista como Miss Desmatamento? Que crédito e autoridade tem ela para emitir juízos sobre os índios? O que diriam os cristão inteligentes e sensíveis contemporâneos? Respostas em cartas à redação, com a margem de erro de 3% para mais ou para menos.



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Sobre a iminência de morte coletiva dos Guarani Kaiowá


“Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”

A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão


- Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais.

O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:

- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.

Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é. Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”. 
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos. 
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos.

Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra. 
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior. 
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram. 
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram. 
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as crianças, mulheres e idosos.” 
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas. 
 “Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o impacto é grande. 
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?

22/10/2012


Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Eleições: índios Tremembé de Itarema elegem vereador

Os índios Tremembé de Almofala e demais comunidades indígenas do município de Itarema terão um representante efetivo na próxima legislatura municipal (2013 – 2016). Manuel Xavier do Nascimento, conhecido como Grosso Tremembé/PV, foi o sétimo vereador mais votado, com 918 votos.

Fonte: Portal das Eleições UOL

Por poucas dezenas de votos, os Tremembé não emplacaram um segundo candidato, Fernando Marciano, que disputou a eleição pelo PRB e teve 620 votos, mas não conseguiu uma vaga na câmara municipal. Ficou na segunda suplência de seu partido. Ele, que já tinha ficado na suplência na eleição anterior, chegou a exercer o mandato por um determinado período, depois de uma negociação política com o atual prefeito Robério Monteiro, conforme publicado aqui no blog (ver postagem).
Fernando trocou de partido, saiu do PMDB e foi para o PRB, mas manteve-se do lado do Robério Monteiro, diferente de Grosso, que se elegeu pelo PV, partido do prefeito eleito Binú Monteiro. Seu adversário, Dedé Rios teve a candidatura indeferida pela Lei da Ficha Limpa e os votos invalidados.
A vaga na câmara dos vereadores fortalece a representação política dos Tremembé de Itarema, que passa a ter um representante indígena e um interlocutor permanente com poder público municipal. Também reforça localmente a luta pela regularização da terra indígena Tremembé de Almofala.


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Programa Câmera 12 - Índios do Ceará

O programa Câmera 12 da TV Jangadeiro, filiada da Band no Ceará, produziu uma reportagem intitulada "Índios do Ceará", onde mostra alguns aspectos do cotidiano das aldeias indígenas visitadas pela equipe de reportagem. Apesar das populações indígenas não se limitarem as que foram mostradas no programa, notadamente aquelas que se encontram na região metropolitana de Fortaleza (Tapeba, Jenipapo-Kanindé e Pitagruary), vale a pena dar uma conferida. 
Bom programa...





segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Índios no Ceará: Falta de demarcação das terras indígenas gera crimes e violência


 Matéria publicada no Diário do Nordeste em 20/08/2012 



A questão fundiária está intimamente ligada à violência e ao uso de drogas nas aldeias indígenas cearenses

Na aldeia dos Pitaguarys, em Pacatuba e Maracanaú, crianças e adolescentes participam de projetos de prevenção ao uso de drogas e álcool. O objetivo do grupo é aumentar a autoestima e repassar um pouco da história da etnia.
 
"Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais e/ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos". O trecho faz parte do artigo 58 do Estatuto do Índio, assegurado desde 19 de dezembro de 1973. Contudo, a legislação não é respeitada na maioria das aldeias indígenas do Ceará e, por conta disso, alguns povos, como os Jenipapos-Kanindés, de Aquiraz, e Pitaguarys, de Pacatuba e Maracanaú, foram obrigados a fechar o acesso de suas aldeias para evitar conflitos e crimes.

Segundo a advogada Aline Furtado, integrante da equipe do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, que presta assessoria jurídica aos povos Tapebas, Pitaguarys e Jenipapos-Kanindés, a violência nas terras indígenas do Ceará é recorrente e tem relação forte com a questão fundiária, ainda longe de ser solucionada no Estado.
"A violência e o consumo de bebida alcoólica e outras drogas nas aldeias estão intimamente ligados à questão da terra. Os não-índios não respeitam a posse da terra pelos indígenas", pontua a advogada.
No Ceará, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao Censo 2010, existem 19.336 índios, divididos em 14 etnias. Destes, 12.598 estão na área urbana e 6.738 na área rural. Porém, somente o povo Tremembé do Córrego João Pereira, de Acaraú e Itarema, tem sua terra homologada. "Os índios só passam a ter direito de fato às terras quando são homologadas pelo Ministério Público como áreas indígenas", explica.

Sem homologação, algumas etnias lutam como podem para manter a integridade física dos seus membros, de suas propriedades e protegê-los da violência.

No sábado (11), o povo Jenipapo-Kanindé fez uma "corrente humana" para impedir o acesso de não-índios às terras da Lagoa da Encantada, em Aquiraz. De acordo com a cacique Juliana Alves, a ação será feita aos fins de semana para coibir o uso de drogas, de bebidas alcoólicas e crimes na aldeia.
O alcoolismo gera problemas familiares e de saúde em muitos indígenas
FOTO: WALESKA SANTIAGO

A atitude radical foi tomada após o assassinato de um morador da comunidade, no último dia 6, que teria sido motivado pelo uso de drogas. "Nós fechamos a entrada, mas estamos recebendo ameaças até de morte", alerta a cacique.

A advogada do CPDH disse que essa não é a primeira denúncia desse tipo que a instituição recebe. "As belezas naturais das aldeias indígenas atraem pessoas que querem fazer uso da área como ponto turístico, levando bebidas e alimentos. Porém, quem decide pelo livre acesso é o indígena", esclarece.

Aline Furtado também chama a atenção para a ação recente, feita pelos índios Pitaguarys, que permaneceram acampados por quase cinco meses, impedindo o acesso das comunidades do entorno ao açude da aldeia, cujo acesso hoje está impedido por uma corrente, em Maracanaú.

Já em Caucaia, especialmente entre os Tapeba que vivem na comunidade da Ponte, próximo ao Rio Ceará, o problema são os crimes. "Há pouco tempo, vivenciamos um clima muito tenso naquela região porque as casas estavam sendo assaltadas. Para proteger as suas propriedades, alguns indígenas foram presos, por estarem portando armas sem autorização", afirma.

Segurança

Quanto à segurança, Aline Furtado diz que, pelo fato de as terras ainda não terem sido demarcadas, ainda não há consenso sobre qual polícia deve atuar no local. "Se as terras fossem homologadas, só a Polícia Federal poderia ter acesso. Algumas vezes, precisamos de policiamento e ninguém quer nos atender".

De acordo com o assessor de imprensa da Polícia Militar do Ceará, coronel Albano, a corporação atua nas áreas indígenas sempre que existe alguma ocorrência, seja lesão corporal, homicídio ou qualquer outro crime. "Nós atendemos como qualquer outra comunidade", explica.

Dados

De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), não existem dados sobre a situação de consumo de álcool e drogas por índios no Brasil. A Secretaria ainda esclarece que o Distrito Especial Indígena (DSEI) Ceará realiza ações de promoção de saúde, prevenção e redução de danos para o uso de álcool e outras drogas na atenção primária.

Também segundo a Sesai, em 2011, as ações foram reforçadas em todo o País, com a contratação de cerca de 40 psicólogos para atuação na saúde mental, sendo dois responsáveis pelo Ceará. Ações são realizadas a partir de uma adequação às especificidades culturais das etnias, com a participação das comunidades, buscando articulação com a educação, esporte e assistência social. Já os pacientes indígenas que precisam de atenção especializada são encaminhados aos equipamentos de saúde mental municipais ou estaduais.


Combate às drogas é feito de forma diferente pelas etnias

Grupo Iandé Meme Maranongara, composto por crianças e adolescentes indígenas Pitaguarys, atua na prevenção ao uso de drogas ilícitas e também de bebidas alcoólicas na comunidade.
O apoio de outras entidades, como Organizações Não-Governamentais e prefeituras dos municípios, faz toda a diferença no combate ao alcoolismo e ao uso de drogas entre os indígenas no Ceará, principalmente no que diz respeito aos povos que vivem em áreas próximas à Capital cearense, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Grupo Iandé Meme Maranongara, composto por crianças e adolescentes indígenas Pitaguarys, atua na prevenção ao uso de drogas ilícitas e também de bebidas alcoólicas na comunidade
FOTO: WALESKA SANTIAGO

A equipe de reportagem do Diário do Nordeste visitou duas comunidades indígenas: os Tapeba da Lagoa II, que residem em Caucaia, e os Pitaguary, que vivem na zona rural do município de Maracanaú.
De acordo com o facilitador de artes indígenas Carlos Guedes, índio Pitaguary que desenvolve projeto com crianças e adolescentes na região há mais de dez anos, a saída encontrada por essa etnia é a prevenção.
"Não estamos livres das drogas, mas procuramos conscientizar essas crianças de que não se deve usá-las", explica.

Carlos Guedes coordena o grupo "Iandé Meme Maranongara", que, em tupi, significa "Somos todos parentes", composto por 28 crianças e adolescentes de idades variadas, que vão de sete a 13 anos e meio.

Os beneficiados participam dos encontros do grupo semanalmente e recebem lanche fornecido pela prefeitura de Maracanaú. O projeto ainda tem parceria com várias instituições privadas, como colégios particulares, que oferecem bolsas de estudo para os integrantes do grupo. "Procuramos fortalecer a autoestima deles para que quando eles chegarem ao mercado de trabalho, não terem tantos problemas ao se assumirem como índios, como a discriminação", diz.
FOTO: WALESKA SANTIAGO


Através do projeto, vários jovens estão matriculados em cursos técnicos e de nível superior e outros já até conseguiram sua vaga no primeiro emprego. "Temos uma ex-aluna que é gerente de loja em uma rede de farmácias e outro que está fazendo faculdade de Contabilidade", comemora o facilitador de artes indígenas, Carlos Guedes.

Entre as atividades desenvolvidas pelo grupo, está a dança do Toré e outras apresentações tradicionais. O figurino, confeccionado em palha de carnaúba e penas de aves, é feito por Carlos Guedes e sua esposa, Ana Lúcia Silva Duarte, índia Kanindé. "Nós fazemos apresentações em escolas, instituições públicas e privadas e, inclusive, já fomos até para a Itália, mostrar a cultura dos índios Pitaguarys", conta.

Sobre casos de alcoolismo e uso de drogas ilícitas dentro da aldeia, Carlos Guedes diz não ter conhecimento. "Nós tínhamos muitos problemas quando o acesso ao açude era permitido a todos, porque não-índios usavam drogas e bebidas por lá e sempre tinha confusão. Mas agora está tudo bem mais calmo", relata.

Falta de apoio

Em Caucaia, a realidade do povo Tapeba é bem diferente. Apesar de cada comunidade integrante da aldeia contar com um grupo cultural, composto de crianças e adolescentes, a falta de apoio de entidades não governamentais e também do poder público ajudam a aumentar as estatísticas de alcoolismo, uso de drogas ilícitas e até de assassinatos dentro da aldeia.

Segundo a agente de saúde indígena Iracema Matos, índia Tapeba que atua nas comunidades da etnia há cerca de 15 anos, o alcoolismo é um problema que atinge muitas famílias.

"O índio tem o costume de usar bebida alcoólica em seus rituais. Só que alguns começaram a substituir pela cachaça e se viciaram. O mocororó (bebida feita de caju, utilizada nos rituais do Ceará) é muito forte e não se pode exagerar nas doses", afirma. Iracema Matos e a também agente de saúde indígena Sílvia Nascimento participaram, no ano passado, de um curso oferecido pelo Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), de facilitador de Terapias Comunitárias, em Porto Seguro, na Bahia.

Desde então, as duas realizam entre os Tapebas encontros mensais, abertos a toda a população indígena da aldeia, para que exponham as angústias. Porém, os problemas gerados pelo alcoolismo estão sempre presentes. "A violência causada pelo uso de álcool é muito citada pelos participantes", relata Iracema.

Além da bebida alcoólica, o crack também já faz suas vítimas na aldeia. "Tenho um familiar que mora aqui, é viciado e não quer se tratar. Ele começou com maconha, trazida por pessoas de fora e ele agora é dependente da ´pedra maldita´, o que destruiu a família, porque separou da mulher e tem quatro filhos pequenos", conta Sílvia Nascimento.

Iracema Matos dá assistência a uma índia, também mãe de quatro filhos pequenos, dependente de crack. "Ela me contou que começou a usar com as pessoas da família, dentro da aldeia. Depois que conversei com ela, orientando que poderia perder a guarda dos filhos por causa do vício, ela parou e está há quatro meses sem usar".

Para tratar dependentes químicos, entre os Tapebas, a única opção é encaminhar para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do município de Caucaia. "Não temos convênio com nenhuma clínica de tratamento. Lutamos contra as drogas aqui praticamente sozinhas", desabafa Iracema Matos.

Apesar de os números do IBGE apontarem que 52% dos indígenas cearenses não possuem rendimentos, as duas agentes de saúde afirmam que entre os dependentes atendidos pela Terapia Comunitária, a maioria trabalha. "Praticamente todos os que temos notícia que usam droga ou álcool têm emprego e assim sustentam o vício", revelam.

Para aumentar a renda em casa, o autônomo Francisco (nome fictício) decidiu diminuir o uso de bebida alcoólica. "Bebia nas minhas folgas, dia sim, dia não, e isso estava me deixando cansado. Só bebo agora nos fins de semana e já comecei a economizar. Quero deixar de vez", confidencia Francisco.

Políticas públicas ainda são insuficientes

"Não existe uma tendência natural do índio para se tornar alcoólatra ou dependente químico". A afirmação é do antropólogo e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Gerson Augusto Oliveira Júnior.

Segundo o antropólogo, a dependência de drogas lícitas e ilícitas é um problema que diz respeito à sociedade como um todo. "A destruição das referências aproxima o homem do vício e as drogas, hoje, afetam todos os segmentos da sociedade", frisa.

Para Gerson Oliveira Júnior, deveriam ser criadas políticas públicas para combater essas práticas. "No fim do século XIX e início do século XX, a sociedade americana era considerada alcoólatra. Porém, as autoridades se preocuparam em combater o vício com leis rigorosas que ainda hoje perduram", lembra.

A historiadora Ana Lúcia Tófoli também ressalta que a associação dos indígenas ao consumo de álcool e drogas contribui para uma visão estigmatizada que se construiu em torno das populações indígenas no Ceará.

"Sem dúvida, este é um tema complexo que envolve questões ligadas à saúde, segurança pública e políticas indigenistas mais eficientes, sobre os quais carecem de mais estudos qualificados em nosso Estado", afirma a historiadora.

Ana Lúcia ainda alerta sobre o fato de alguns dos povos indígenas estarem muito próximos à Capital cearense, o que contribui para o agravamento do quadro de violência. "É importante elucidar que alguns povos, como Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé encontram-se dentro ou muito próximos da Região Metropolitana de Fortaleza, nas imediações de indústrias e rodovias. Portanto, sujeitos aos impactos inerentes a qualquer grande cidade brasileira: violência urbana, tráfico e consumo de drogas", afirma.

Além disso, de acordo com a historiadora, a situação se torna mais grave, devido à não demarcação da maioria das terras. "Mesmo as que estão demarcadas, ainda não foram desintrusadas (retirada e indenização de pessoas não indígenas), dificultando a restrição da entrada de pessoas estranhas", destaca.

Identidade

Já o impacto do reconhecimento da identidade dos indígenas pelas comunidades do entorno pode ter várias facetas. "Isso pode variar bastante, pois ´a comunidade do entorno´ pode ser desde industriais até quem compra terrenos em loteamentos irregulares, voltados à população de baixa renda", esclarece.

Ana Lúcia chama a atenção para quem faz uso das áreas indígenas para "turismo". "As pessoas que procuram esses espaços para o lazer, muitas vezes, o fazem associado ao consumo de álcool e drogas. Via de regra, não estabelecem relações respeitosas com as populações nativas e desconsideram ou desconhecem os limites das terras".

KELLY GARCIA
REPÓRTER