quarta-feira, 20 de abril de 2011

Reportagem aborda a questão da autodeterminação dos Povos Indígenas do Nordeste

Divulgo artigo da Revista Coletiva, publicação da Fundação Joaquim Nabuco, sobre a questão da autodeterminação como critério para afirmação da identidade indígena.
Boa leitura!


18/04/2011

Autoidentificação é critério suficiente para ser indígena


Por Camila Almeida

“A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isso são tão inocentes como em mostrar o rosto”. Assim observou o escrivão Pero Vaz de Caminha, em sua carta de viagem, sobre os habitantes da terra onde aportaram os portugueses em 1500.

Índios Chico e Eliane, de Tabajara de Poranga, Ceará. Foto: Estêvão Palitot.Os indígenas, que hoje representam apenas 0,7% da população brasileira, vivem caricaturados. No imaginário das pessoas, se assemelham aos  índios que viviam no Brasil do século XV e as mudanças por que passam são vistas como descaracterização. Não há definição científica consensual sobre quem é índio. Ser indígena está além da questão racial ou da manutenção dos costumes ancestrais. Os indígenas são aqueles que reivindicam sua relação histórica e social com os grupos que aqui estavam antes da colonização europeia. Por depender de mobilização, a identificação dos índios e a garantia dos seus direitos são um impasse.

Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1990 havia 294 mil índios no país. No decorrer de uma década, esse número saltou 150%, mostrando que 734 mil pessoas se autodeclararam indígenas em 2000. Os dados dos últimos dez anos ainda não foram divulgados pelo instituto.

Reconhecimento

A questão da identificação do indígena ganhou força com a Constituição de 1988, que possibilitou o surgimento de organizações e associações específicas. Para garantir o reconhecimento étnico e territorial dos índios, há uma série de regulamentações nacionais e internacionais que podem ser acionadas, como o Estatuto do Índio, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989 (ratificada pelo Brasil em 2003) e a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos índios de 2007.

Enquanto a população indígena nordestina era de 55.853 de habitantes no início da década de 1990, esse número já ultrapassava os 170 mil na contagem do IBGE de 2000. O pesquisador Evaldo Mendes, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), alerta que esse salto não se deu devido ao nascimento de novas etnias. A questão é de reconhecimento. Muitos dos índios que vivem em áreas urbanas têm optado por se declarar como tal, o que mostra uma comunidade mais empenhada em fazer valer seus direitos. “Esse espaço político foi conquistado pelos índios e, sem dúvida, tem encorajado parte da população que, por medo ou vergonha, não se declarava indígena”, salienta.

A tendência atual, evidenciada nas decisões jurídicas, é descartar critérios como raça, relacionada a traços físicos e genéticos, da questão do reconhecimento. A autoidentificação, que é o sentimento individual ou coletivo de pertencer a uma comunidade indígena, é o que define as etnias. “A adoção desse critério é crucial para o reconhecimento étnico e territorial dos grupos indígenas do Nordeste, já que boa parte desta população não tem a mesma aparência das populações pré-colombianas encontradas aqui no século XVI pelos primeiros conquistadores europeus”, explica Mendes.

Os índios do Nordeste foram, por muito tempo, negligenciados pelos antropólogos e não identificados pelos censos. Desde a colonização, as comunidades nordestinas estiveram em maior contato com imigrantes do que qualquer outro povo indígena do Brasil. A região Amazônica, por não estar na costa e por ter acesso mais difícil, permaneceram isoladas por mais tempo.

Além de os indígenas no Nordeste não diferirem da população não índia quanto à aparência física, há outros aspectos que dificultam a identificação de quem é e quem não é índio. A língua falada por eles é o português e as técnicas de plantio e colheita, bem como o modo de construir casas e de se vestir, são as mesmas dos camponeses. A própria população não indígena é muito misturada e não apresenta traços físicos que a diferencie. Visto isso, o antropólogo Evaldo Medes aponta que ter “aparência indígena”, usar penas e pinturas corporais, não dá mais ou menos direitos à terra e ao reconhecimento étnico. A comunidade dos Fulni-Ô, do agreste pernambucano, é a única do Nordeste que ainda preserva uma língua indígena, o yaathe.

De acordo com Mendes, o reconhecimento dos índios se deu graças à sua busca por visibilidade. Os povos se organizaram politicamente, fecharam estradas, fizeram protestos, foram assassinados, presos, torturados. “Foi assim que se deu, e que se dá, o reconhecimento oficial da identidade indígena no Brasil, infelizmente. O lado positivo dessa história é que essa luta tem dado frutos e mais e mais grupos indígenas estão saindo do anonimato e entrando na cena política nacional”.

Identidade

“Sempre existiram múltiplos modos de ser indígena, tanto no passado, como na atualidade”, diz o antropólogo Estêvão Palitot, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). No próprio universo indígena, há inúmeras etnias completamente distintas. A Fundação Nacional do Índio (Funai) aponta que há 225 sociedades indígenas no Brasil, com características e costumes singulares, e mais de 180 línguas diferentes.

Apesar dessa diversidade, os povos indígenas são tratados de modo caricatural e preconceituoso desde os primeiros contatos com os europeus. Palitot explica que a adoção do termo índio e seus sinônimos, como nativo, aborígene, primitivo, selvagem e autóctone, são todos carregados de fortes doses de preconceito e estereótipos. “Há uma visão distorcida que associa os povos indígenas a atraso, primitividade, animalidade e infância”, afirma.

O pesquisador comenta que as relações entre a sociedade nacional e as sociedades indígenas foram marcadas pela desigualdade. “Dessa assimetria, desenvolveram-se relações viciadas que tomavam o indígena em dois polos possíveis: o inimigo a ser combatido ou o coitadinho a ser salvo. Em ambas as situações, o resultado final sempre rendia um bom número de braços para o trabalho”, critica. As terras e os próprios corpos dos indígenas serviram, por muito tempo, como fonte de exploração e dominação.

Atualmente, essas comunidades podem ser encontradas tanto nas reservas, quando nas cidades. As reservas indígenas são comumente associadas a lugares distantes, completamente isolados do que se convencionou chamar de civilização. Palitot aponta que esses ambientes “evocam ideias de preservação ambiental e humana que tendem a aprisionar os povos indígenas num passado que nós idealizamos que fosse o mais adequado para eles”. Na verdade, as condições nos territórios indígenas, principalmente os do Nordeste, é bem diferente. As comunidades possuem escolas, postos de saúde e várias delas já têm acesso à internet.

Os índios que vivem nas cidades ou que já incorporaram práticas do meio urbano ao seu cotidiano não perdem identidade nem são considerados menos indígenas. Um dos principais dispositivos para esse avanço surgiu com a Constituição de 1988, que reconhece aos povos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, sem estabelecer que eles devam estar circunscritos a um determinado lugar, vivendo em reservas, ou que devam abandonar a sua condição de indígena para tornarem-se cidadãos brasileiros.

Índios nas cidades

Muitos índios vivem nas áreas rurais em situação precária, sem condições de sobreviver. Além de o Brasil ser o país onde mais se concentra propriedade rural no mundo, a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu a Funai, até a década de 1970, contribuiu para esse quadro de pobreza. O SPI se engajou muito timidamente na questão dos territórios tradicionais e, quando atuante, demarcou territórios de tamanho insuficiente, com solos pobres e difícil acesso à água. Assim, os índios seguiam o mesmo caminho dos pobres no campo e migravam para as cidades.

Em 1990, o censo populacional contabilizava que 76,1% dos indígenas viviam em zonas rurais. Uma década depois, mais da metade residia em áreas urbanas, o que significa que 383 mil índios estavam nas cidades em 2000. De acordo com o IBGE, essa aparente urbanização deve-se a uma maior autodeclaração nas regiões Sudeste e Nordeste, que têm menos terras indígenas homologadas e onde ocorreram importantes movimentos de reemergência étnica nas últimas décadas.

O antropólogo Marcos Alexandre Albuquerque, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estudou a luta dos Pankararu da região metropolitana de São Paulo por políticas específicas para indígenas. “A comunidade deveria ter acesso a uma série de direitos diferenciados, tal como ocorre nas aldeias em Pernambuco, mas os órgãos públicos, à revelia da Constituição, tratavam os Pankararu em São Paulo como um grupo ‘desaldeado’”, explica Albuquerque. Assim, essa condição foi utilizada como critério para a omissão no atendimento e na consolidação de políticas públicas para a comunidade Pankararu da capital paulista.

Crianças da SOS Pankararu. Foto do arquivo da Associação.Como forma de reivindicar seus direitos e garantir a sua identificação como indígenas, os Pankararu fundaram a Associação SOS Pankararu em 1994. Com essa formalização de sua presença na cidade, eles vêm conquistando uma série de direitos, além de estarem ampliando sua visibilidade social, fortalecendo suas tradições.

Segundo o pesquisador, entre as coisas mais importantes que a associação conseguiu está o atendimento diferenciado na saúde. Uma equipe do Programa Saúde da Família (PSF) formada por indígenas atua no bairro onde está a maior parte dos Pankararu em São Paulo, o Real Parque. Além disso, conseguiram construir uma parceria com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com a criação do Projeto Pindorama, que concede bolsas de estudo integrais para os índios que passarem no vestibular. “Nesse projeto já se formaram dezenas de indígenas de todo o país, inclusive a atual presidente da associação dos Pankararu”, diz.

Índios Pankararu fazem a dança dos praiás na capital paulista. Foto: Marcos Alexandre Albuquerque.Muitos índios que vivem nas cidades resgatam tradições culturais de seu povo como forma de autoafirmação étnica. Albuquerque explica que apresentações de canto, dança e outros elementos tradicionais indígenas nos centros urbanos têm se mostrado como um dos melhores momentos para o diálogo intercultural. “No caso dos Pankararu em São Paulo, a dança dos praiás se tornou um dos mais bonitos e significativos espaços de encontro e de confraternização desses indígenas na cidade”. Além disso, as crianças viajam constantemente para as aldeias para participar de festas e rituais ou para passar férias.

Os indígenas nas cidades ainda são alvo de preconceito e violência. Entretanto, as comunidades também representam símbolo de resistência e modelo para projetos de outras formas de sociabilidade e convivência. “As pessoas passam a valorizar os indígenas por seus valores baseados na coletividade e na solidariedade, que representam uma alternativa ao modelo do consumismo e do individualismo moderno”, conclui.

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